Sobre Quando os Espíritos Voltam à Terra
Desde o início de 2019, quando eu comecei a apresentar os livros da Arole Cultural em feiras no exterior, eu fui muito abençoado por Exu e pelos Orixás ao encontrar lá do outro lado do mundo pessoas super interessadas na nossa cultura e prática espiritual. Mesmo sabendo que na Europa e nos Estados Unidos existem uma série de tradições de magia e bruxaria, eu realmente não imaginava que o tema das religiões de matriz africana e, especialmente, as religiões afro-brasileiras instigassem tanto o interesse e a curiosidade dos leitores e livreiros de lá.
O interesse deles é tamanho por esses temas que, menos de um ano depois, eu assinei o primeiro contrato internacional e até o fim de 2020 o meu livro de estréia - Desvendando Exu: o Guardião dos Caminhos, no qual eu ensino em detalhes como surgiu e o que é a Quimbanda Tradicional - vai ganhar uma versão em inglês e ser publicado em todo o mundo (até na Índia, que por incrivel que pareça, tem idioma próprio mas consome livros em inglês).
Nessa hora eu lembrei com um carinho enorme de duas pessoas especiais que eu conheci durante essas viagens que eu comentei: a Christina (dona a loja Treadwells, uma mistura de livraria com loja de artigos místicos e espaço de palestras) e a Geraldine (também dona de livraria, a Atlantis Bookshop, especializada em temas de esoterismo e bruxaria).
Pela experiência profissional e religiosa delas (ambas são Altas Sacerdotisas de Wicca), elas já eram bastante familiarizadas com os temas Umbanda, Quimbanda e Candomblé, mas um aspecto em específico ainda soava um pouco estranho pras duas: o fenômeno na incorporação.
Imagine: se as duas profissionais da área, com acesso a livros de todo o mundo e que além do mais têm experiência com as praticas de magia, não entendiam exatamente o que é essa coisa de sermos possuídos por espíritos e, por alguns instantes, deixarmos de ser nós mesmos para ser alguém que já morreu, como eu esperar que os leitores do outro lado do oceano entendessem isso quando começassem a ler Desvendando Exu?
De repente, eu me vi mais uma vez no papel de autor, dessa vez tentando me colocar no lugar dos leitores estrangeiros... E foi pensando nisso - e pra explicar melhor tudo isso - que eu escrevi um capítulo inteiramente novo pra abrir a edição em inglês, que hoje eu compartilho aqui e ainda vou um pouco mais além, já que esse é um tema bem familiar pra nós, brasileiros.
Fique comigo até o final do texto e vamos entender juntos:
- O que é o fenômeno da incorporação?
- O que separa e diferencia os Orixás e os Espíritos-Entidades?
- Qual a diferença entre incorporação e possessão?
- Qual o real objetivo desse fenônemo na prática religiosa?
Nos terreiros, nas Igrejas e nos Templos...
A magia está em todo lugar!
A prática mágica e a realização de rituais de manipulação de energias buscando homenagear e oferendar as divindades para que elas interfiram e modifiquem as situações ao nosso redor está presente em todas as tradições espirituais do mundo. Mesmo nas religiões ocidentais como o catolicismo, por exemplo, é possível encontrar atos nos quais o uso de elementos naturais como as plantas, a água, as bebidas e os alimentos ganham simbolismo mágico e transformam-se em artefatos sagrados na forma de incensos, água benta, vinho/sangue e hóstia/corpo de Cristo.
Da mesma maneira, em todas essas tradições e religiões – cada uma a seu modo -, além das divindades, também os espíritos de pessoas que se destacaram pelos feitos em vida ou de parentes e afetos recebem honrarias, oferendas e festejos em sua memória. Entretanto, a principal diferença entre as religiões de matriz africana de todas as demais é a crença na capacidade dessas divindades e espíritos retornarem à vida temporariamente e compartilharem de suas homenagens junto aos que lhes oferendaram.
A esse fenômeno chamamos incorporação ou possessão.
Aos que estão chegando agora e que não tem familiaridade com essas práticas, é importante que se diga que ainda que as expressões incorporação e possessão possam parecer assustadoras, especialmente por nos remeterem às imagens criadas pelo cinema em filmes de terror nos quais espíritos e entidades demoníacas assombram as pessoas, nas tradições de matriz africana – dentre elas, o Candomblé, a Umbanda e a Quimbanda – esse ato é considerado sagrado e, acima de tudo, aceito de forma espontânea e voluntária por seus praticantes. É através delas que a comunhão acontece e que homens e deuses tornam-se um.
Seja nos ritos secretos de iniciação ou de passagem de graus hierárquicos, seja nas festas públicas, é através desse fenômeno que as divindades e espíritos voltam à vida e desfrutam dos prazeres mundanos outra vez, recebem suas oferendas de maneira simbólica e real, alimentando-se, bebendo, cantando, dançando e conversando diretamente com seus fiéis, trazendo ao campo físico o que em outras tradições e religiões é experimentado apenas no campo simbólico.
Há, porém, que se entender a diferença entre as duas expressões, incorporação e possessão, visto que a dinâmica pela qual se realizam são opostas e complementares. Para isso é preciso, antes, compreender a diferença entre as energias cultuadas nessas religiões: Orixás e espíritos.
A diferença entre Orixás e Espíritos
Independente de sua origem étnico-geográfica em África, como eu explico em detalhes em Desvendando Exu, ao chegarem às Américas através da diáspora as crenças e práticas espirituais dos negros escravizados foram resinificados e contextualizados à nova realidade. Com isso, muitos ritos e costumes se perderam e outros tiveram de ser adaptados, mantendo-se, porém, sua essência, que a fim de simplificar a compreensão, resumimos em dois grupos distintos.
O primeiro deles refere-se ao culto e à adoração das energias primordiais como o fogo, as águas, a terra; as estações do ano, as fases da lua e os fenômenos naturais; as potências de vida, morte e renascimento. A estas energias, que assumem caráter sagrado e divino sendo personificadas e individualizadas como divindades – seres com poderes sobrenaturais e a capacidade de intervirem na realidade humana, criados espontaneamente ou por outra divindade e, por excelência, eternos e imortais -, chamamos Orixás, Voduns, Inkices ou Loás.
Ao mesmo tempo, as práticas em África também têm por base o culto aos antepassados e aos familiares falecidos, acreditando-se na perpetuidade da alma após a morte física da matéria, sendo honrados em memória individual e coletiva. A estas energias – que podem ou não manter suas individualizações ante mortem em sua atuação post mortem e que são caracterizadas, justamente, pela finitude de sua existência entre os mortais -, chamamos espíritos, entidades espirituais ou guias espirituais.
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